sábado, 30 de novembro de 2013

SOBRE BICHICES, ESCOLHAS E PÃO | Alexandre Bortolini



Há uma imensa diferença entre dizer que a minha homossexualidade é uma escolha e dizer que eu tenho o direito de escolher ser homossexual. dizer que a minha homossexualidade é uma simples escolha é de uma estupidez absurda. não, eu não acordei um belo dia, abri a janela, olhei pra fora, vi aquele sol lindo e disse: ah, a partir de hoje eu vou virar viado. como também seria estúpido dizer que eu já nasci viado. Não, eu não dava pinta na barriga. não, eu não fazia nem ideia de com quem eu ia casar aos quatro anos de idade. A ideia essencialista de que se nasce gay ou lésbica é tão fantasiosa quanto a de que se nasce hetero. eu nasci. e ponto. nasci com alguma coisa no meio das pernas que fez com que escrevessem masculino na minha certidão de nascimento. e essa mesma coisa no meio das pernas despertou nas pessoas em volta um monte de expectativas. e fez com que elas comprassem pra mim presentes de um lado da loja de brinquedos - e não do outro.

mas eu tive sorte. muita sorte. fui criado por uma mãe solteira. na verdade divorciada. ainda lá por 1980. pode parecer pouco, mas minha mãe se separou (só) dois anos depois que a lei do divórcio foi aprovada no Brasil. e ela era definitivamente feminista. não de partido, mas de vida. como minha irmã (bem) mais velha. o único homem da casa era meu irmão, se formando militar desde o colégio, razoavelmente machista e conservador, mas afogado numa casa dominada por mulheres.

daí alguém já vai começar a pirar e inventar mil argumentos psicanalíticos pra falar qualquer baboseira sobre figuras paternas ausentes e figuras maternas dominantes. sinceramente, vão pra porra. e entendam definitivamente uma coisa: não, não é preciso um pau dominante em casa pra se criar bem uma criança! e eu fui muito bem criado. tive o maior exemplo de protagonismo, resistência e determinação que já encontrei em alguém até hoje. e, claro, de feminilidade. a coisa é bem mais simples do que parece. sabe quando você começa a conviver com alguém, mas viver cotidianamente, como um namorado por exemplo? de tanto conviver com aquela pessoa, você vai pegando alguns jeitos de falar, de mexer o braço, compartilhando ideias. se você é uma criança que está aprendendo a falar, a andar, a sentar - e a pensar, você vai aprender um bocado disso com as pessoas com quem você convive. e se você é um homem e a maioria das pessoas com quem você convive cotidianamente são mulheres, é bem provável que você pegue delas um bocado de jeitos - e ideias. daí que obviamente eu era xingado de bichinha na escola. não que eu tivesse clareza se eu queria trepar com meninos ou com meninas. não mesmo. eu não era uma criança gay. eu era um menino criado pela mãe. ponto. (e se a expressão "menino criado pela mãe" lhe parece conter qualquer negatividade, então queridx, você é machista! machista e ingrato.) o fato é que dar pinta e dar a bunda são coisas bem diferentes - embora eu adore quando as duas estão juntas!

não, eu não sei dizer quando eu senti tesão por um homem a primeira vez. mas uma coisa eu posso garantir: minha infância foi fundamentalmente bissexual. eu me lembro de brincadeiras sexuais com primos e primas. isso desde os seis até os treze! e, creia, eu não sou um caso à parte. se você perguntar para qualquer pessoa, a imensa maioria delas, se responder sinceramente - o que eu duvido - vai ter tido experiências sexuais (não to falando de sexo, ok? mas de sexualidade!) com os dois lados. inclusive porque a gente leva um tempo pra entender direito essa coisa de lado!

o problema é que a gente, quando conta a nossa história, não simplesmente relata fatos. já dizia Waly Salomão, a memória é uma ilha de edição! o que eu conto hoje não é simplesmente o que aconteceu, mas a uma versão do meu passado que combina com - e ajuda a construir - a identidade que eu tenho hoje. se eu sou viado, eu vou lembrar de cada quebrada de mão que eu dei no jardim da infância - e ignorar todas as meninas que eu rocei na pré-escola! se eu sou hetero, eu vou contar as histórias das minhas namoradinhas de criança - e certamente apagar todas as brincadeiras de meninos que a gente sabe p-e-r-f-e-i-t-a-m-e-n-t-e que aconteceram. o que eu tô dizendo é que, com as lembranças que eu tenho do meu passado, eu poderia construir uma trajetória obviamente homossexual ou essencialmente heterossexual. mas claro, eu sou bicha, então por muito tempo eu também neguei todas as lembranças que podiam inspirar suspeitas sobre a minha gaylidade, e recortei elas das histórias que eu contava pros amigos. e das histórias que eu contava pra mim mesmo.

e esse é um dos problemas. talvez "o" problema. a gente - ainda - vive num mundo em que as pessoas tem que ser claras. os outros têm que saber exatamente quem você é, enxergar os seus limites, as linhas de contorno que demarcam onde você começa e onde você termina. e se de uns tempos pra cá as opções aumentaram, a necessidade do limite não mudou. Pra mim parece um pouco como mercado de trabalho. Antes você só podia ser médico, advogado ou engenheiro. Agora você pode ser um milhão de coisas - mas você tem que ser alguma! alguma clara e definida o suficiente para lhe garantir um lugar num mercado de trabalho. e você vai ser um antropólogo especialista em oceanografia com mestrado em educação. mas não se iluda, se você resolver que mês que vem você vai vender artesanato, vão dizer que você é louco - no sentido mais fundo dessa palavra. e aí você vai descobrir que apesar de ter mil e uma marcas de sabão em pó pra comprar no mercado, não lavar sua roupa não é uma opção. então você vai entender que aumentar as possibilidades de ser é diferente de aumentar a liberdade de ser.

e sabão em pó e prazer não são coisas tão diferentes assim. se hoje você pode ser mais coisas - lésbica feminina sadomasoquista dominante ou hetero metrossexual pintosa - você ainda tem que ser alguma coisa! e não se engane. ser trans bi libertário moderninho também pode ser mais uma marca na prateleira! o fato é que essa necessidade de limite tem a ver com a própria forma como nós nos entendemos nesse mundo humano. tem a ver com o jeito como eu sei quem eu mesmo sou. e é difícil fugir. porque o cérebro prega peças na gente. e quando a gente acha que saiu do quadrado por um lado, entrou em outro por outro. parece uma coisa meio Alice em que as portas da rua dão pra dentro da casa...

isso tudo pra dizer que apesar de vivermos uma infinidade de experiências, por uma necessidade social, cultural ou do caralho que seja, a gente acaba recortando a memória, editando nossa história, como quem monta um currículo, para construir a identidade (seja ela qual for) que a gente quer vender naquele momento.

Isso não é uma coisa assim tão visível. é um pouco como o caminho pra ir até a padaria. eu sei que eu andei, que mexi minhas pernas, que dei uma porrada de passos, que virei algumas esquinas. também sei que eu não fui voando, nem pisquei o olho e já tava lá. sei que não fui pra "onde eu quis". afinal, eu andei por uma rua que que alguém construiu. atravessei numa faixa porque a lei diz que é ali que se pode atravessar. não fui dando pulinhos porque me ensinaram que isso é ridículo demais pra se fazer. o que significa que eu não fui à padaria sozinho, mesmo que não tivesse ninguém do meu lado. foram pelo menos comigo o engenheiro, o legislador e a professora. eu não lembro direito como chegamos lá. não que eu não lembre porque eu não sei de tudo isso. mas porque tudo isso está tão naturalizado, já ficou tão cotidiano e óbvio, que o meu cérebro não gasta mais tempo de reflexão com isso. eu sei que eu fiz, mas não lembro como, quando, quantos. só sei que hoje eu tô com um pão na mão. e eu vou comer. e vai ser com manteiga!!!

eu não sei como, quando, de que jeito eu fui me construindo e sendo construído. só sei que hoje eu tenho tesão por homem. não por qualquer homem. mas por alguns homens com quem algumas coisas funcionam. suspeito também que se o caminho da padaria não fosse tão amarrado eu talvez pudesse fazer alguns prazeres funcionarem com algumas mulheres (mas ainda tô com preguiça de experimentar ou medo mesmo de bagunçar o meu currículo). o fato é que eu cheguei aqui. to com o pão na minha mão. e eu quero comer - ou dar pra ele. e eu tenho direito de comer, mesmo que não seja só porque eu estou morrendo de fome.

eu quero ter o direito de ser homossexual. se isso for uma condição da qual eu não consigo escapar ou se isso for uma mera e frívola escolha. a minha bunda é minha, é sempre bom lembrar. e eu faço dela e do resto do meu corpo o que eu bem quero. mas eu também quero ter o direito de não ser homossexual - o que não quer dizer que eu me torne hetero. eu quero ter o direito de não caber numa caixa, numa palavra. eu não quero que o meu currículo "diferente" seja aceito. eu quero ter o direito de trabalhar sem fazer um currículo! sem ter que dizer onde eu começo e onde eu termino. poder viver a minha sexualidade sem dizer como, quando e com quem. nem pra vocês nem pra mim mesmo. eu quero poder, por minha própria conta, encontrar o caminho da padaria e decidir, sem ter que explicar pra ninguém, com quem eu quero compartilhar o pão de hoje - ou da minha vida. Bom café da manhã. :-)

quarta-feira, 30 de outubro de 2013

Eu não tenho medo de blackblock.

GLOBONEWS: "A violência nas manifestações cresce e assusta." Assusta quem? Eu não tô assustado. Não torturo animais pra produzir cosmético. Não exploro professores. Não privatizo petróleo. Não tô fazendo rios de dinheiro com a Copa. Não faço lucro botando gente amafuada em ônibus velho. Nem mato jovens negros só porque eles moram na favela. Não. Eu não tô com medo.

Todo mundo diz que quer que as coisas mudem. Alguns querem que mude muito. Mas boa parte não quer que mude tanto assim. Tem muita gente magoada com a promessa não cumprida de primeiro mundo. Cariocas de classe média ressentidos porque finalmente descobriram que não, o Rio não é Nova York. Gente revoltada com a corrupção, mas que faz campanha pro Aécio. Gente que prega liberdade de expressão, mas não acha adequado dois homens se beijando na televisão. Gente pra quem a PM sempre foi muito útil, pra dizer quem são as pessoas de bem - elas, claro - e quem pode ser humilhado, expropriado, espancado ou tomar logo um tiro na cara pra saber o seu lugar.

 Tenho medo, isso sim, é que essa gente babaca faça de novo o que já fez antes. Lá em 64, em 89, lembra? (se não era nascido, joga no google!) E em nome desse medo - que definitivamente não é dos black blocks - em nome do medo de não serem mais os únicos "formadores de opinião", os donos da razão, as elites intelectuais ou qualquer outra abobrinha direitista que seja, eles acabem sustentando o que já sustentaram antes.

 O medo já foi e continua sendo usado pelos piores regimes da história (quem mandou ficar só decorando pro vestibular e não escutar direito o que aquele professor meio comunista dizia nas aulas...). E não só pelas ditaduras, não não. Os americanos são especialistas em fazer isso na "maior democracia do mundo" - haja vista como boa parte deles pode ficar aterrorizado com a ideia de um sistema público de saúde!!!

 Mas a coisa não é tão simples. Se fosse só um medo de classe, era só mirar as bombas pro Leblon. Mas esse é também um medo moral. E conservador tem por toda parte. Porque o mundo é uma coisa só. É como um pega vareta. Se vc puxa praqui, acaba mexendo ali. E no medo de que tudo desmorone, e junto com a vidraça caia também a falácia das "pessoas de bem", é que a coroa classuda da Lagoa e a tia crente da Pavuna acabam dando as mãos. Na verdade tem gente com medo. Muito medo. Medo de que nessa onda venha água demais, e acabem legalizando a maconha, desmilitarizando a PM e abrindo a porteira da favela. E as empregadas domésticas, que (olha que ousadia) já dividem o mesmo avião com elas, agora sentem no sofá! E que as primas sapatão agora tenham lugar na mesa do jantar.

 O problema, e esse é um problema grave, é que pobre tá fazendo faculdade, racismo dá cadeia, bicha tá casando e puta tá querendo carteira de trabalho. Até os vegetarianos tão ficando mais abusados. E é exatamente por isso que eu não tô com medo. E é exatamente por isso que eu tô, finalmente, com alguma esperança.


domingo, 29 de setembro de 2013

EU QURO PROFESSORES QUE SAIBAM FAZER UM COQUETEL MOLOTOV | Alexandre Bortolini

Dizem que professor tem que dar bom exemplo. O problema é saber QUAL é o bom exemplo. Se bom exemplo é chegar na hora, pagar os seus impostos e dar um abraço na Lagoa, eu dispenso.

eu quero professores que gritem na passeata, que invadam câmaras legislativas, que ocupem prédios públicos. que não tenham medo de descumprir as regras, quando as regras são só um jeito de manter a injustiça. e que ensinem outras coisas, além de português e matemática. ou melhor, que ensinem de outro jeito, pra que ler e fazer conta não sirva só pra passar na prova, mas pra mudar a história.

quero professoras que não sigam as regras gramaticais, e que ensinem que a língua é viva graças aos butiquins (assim mesmo, com u e com i!) e não ao dicionário. quero professores cachaceiros(!), que saibam o valor acadêmico de uma mesa de bar.

eu quero professores pretos. mas não aqueles pretos comportados, de cabelos raspados ou devidamente alisados. quero professores pretos de cabelos libertados que ensinem a história de um outro lado. e que inspirem alunos pretos (e brancos) a se libertarem.

quero professores macumbeiros, que ensinem que o diabo nada mais é do que o deus dos vencidos, e que mesmo a escravidão não pode matar a cultura de um povo. quero professoras evangélicas ensinando sobre liberdade religiosa e estado laico.

quero professoras funkeiras, que saibam descer até embaixo. que ensinem que bethoven era foda, mas que é preciso muita competência artística pra fazer um quadradinho de oito. e quero aula de balé e violino nas escolas públicas da periferia, pra lembrar que som de preto e favelado pode ser o que ele quiser tocar.

quero professores cubanos, bolivianos, angolanos, pra ensinar que ser brasileiro não é o único jeito de estar nesse mundo. e que nacionalismo muitas vezes é só um outro nome do racismo.

quero professoras feministas, que ensinem às meninas que elas são donas do seu corpo, e aos meninos, que ser homem também pode ser uma amarra. quero professoras vadias, dando aula de peito de fora e ensinando que a moral foi coisa inventada pelos estupradores. quero professoras putas, dando aula sobre estigma, hipocrisia e liberdade.

eu quero professores viados, que ensinem seus alunos a arrebentarem todos os armários. eu quero professoras travas, que ensinem que não importa o nome, o corpo ou o destino que lhe deram, você pode revirar tudo isso e criar a sua própria identidade.

quero professores surdos dando aula pra alunos que não são surdos e ensinando que o mundo pode ser falado em muitas línguas, inclusive mudas.

quero professores maconheiros, que ensinem que o dono da sua cabeça é só você mesmo e que o mundo pode ser visto de muitos jeitos. quero professores pichadores, que ensinem que as paredes não foram feitas só pra ficarem brancas. e que a cidade pode ser a tela de muitas ideias.

quero professores anarquistas que saibam o valor pedagógico da desobediência civil. quero professores vândalos, pra ensinar que a paz pode ser só um disfarce da verdadeira violência. quero professores de máscara, que saibam que as flores serão sempre prioritárias, mas que tem horas que vinagre e coquetel molotov também são necessários.

por fim, eu quero professores que defendam com unhas e dentes a democracia. mas que também saibam que às vezes a gente precisa pular a grade, quebrar a janela e invadir o palácio, porque a nossa sala de aula não acaba nas paredes da escola. e que ser professor pode ser também um outro jeito de fazer a história.



domingo, 28 de julho de 2013

SOBRE SANTAS E VADIAS | Alexandre Bortolini

Como comentar a destruição da imagem da santa na Marcha das Vadias sem cair no senso comum?

A minha experiência com a Igreja Católica foi muito marginal. Eu cresci em família kardecista. Nada de missa, hóstia, confissão, nem velho testamento. Apesar de muitos espíritas ainda conservarem um bocado do ranço moralista, esses não eram maioria lá em casa. Eu fui ensinado, desde cedo, a olhar para a Igreja com uma certa condescendência arrogante (bem comum entre kardecistas), como quem olha para um adolescente, às vezes pentelho, às vezes engraçado, que ainda não entendeu direito as coisas da vida. Logo logo eu mesmo me dei conta do quanto o espiritismo também podia vir acompanhado de boas doses de estupidez e egocentrismo. Mas aí já é outra história.

Mas, se na minha vida pessoal a Igreja parecia irrelevante, para muitas outras pessoas ela teve um outro peso. E peso aqui não é só uma palavra pra terminar a frase. Conheci mulheres (e homens) que passaram (e passam) a vida atormentadas pelo terrorismo religioso. Uma marca que ficou no corpo. No jeito de sentar, de falar, de trepar e sentir prazer, nos projetos de vida.

Conheço mulheres que foram julgadas quando se separaram. Mal faladas porque fizeram sexo sem compromisso. Excomungadas porque fizeram um aborto (e que se culpam até hoje por isso). Mulheres que introjetaram um controle do corpo e uma percepção tão pecaminosa do sexo que até hoje não conseguem gozar direito. Mulheres atormentadas em intermináveis almoços de família onde todo mundo só quer saber quando ela vai arrumar um marido. Mulheres pra quem manter a "família" (leia-se: casamento heterossexual com filhos) era tão importante que elas abriram mão dos estudos, da carreira, que dirá da felicidade (em alguns casos até mesmo da sua própria dignidade, quiçá da sua integridade física).

Mas o terrorismo religioso não atinge só elas. Tenho amigos gays que passaram anos sendo torturados pela culpa e pelo pecado. Alguns foram expulsos de casa. Alguns excluídos dos círculos de amigos ou dos grupos de trabalho da Igreja. Outros passaram até por tratamentos de reversão (que visivelmente não funcionaram...). Outros até hoje têm medo de contar. Boa parte segue sendo ignorada pela família. Uns tantos foram finalmente acolhidos pelos parentes, mas lhes reservaram aquela cadeira da mesa onde sentam os dignos da compaixão, do lado do primo drogado e da tia que não soube criar os filhos direito.

Pra quem é criado fora da tradição cristã, stricto sensu, pode parecer (como parece ainda pra mim) muito difícil entender o peso que esse discurso tem sobre a vida de uma pessoa. Imagine o que significa realmente acreditar no inferno. Realmente acreditar no pecado. Realmente acreditar que pelo jeito como você sente prazer, você pode ir parar nos braços do diabo por toda a eternidade. Ou mesmo que você não tenha uma fé assim tão medieval, imagine que a cada transa, beijo ou mesmo mera punheta ou siririca, depois do prazer lhe venha uma sensação horrível de culpa, culpa pela certeza de que você ofendeu não só sua mãe, sua sociedade, mas o próprio deus que te deu a vida. É nesse nível.

Isso não é pouca coisa. É dor que deixa marca pro resto da vida. Porque religião não é como TV. Não dá simplesmente pra mudar de canal. Porque tem a ver com o jeito que você aprendeu a entender o próprio mundo. A enxergar você mesmo e a projetar toda a sua vida. E mesmo depois que a gente manda o mundo inteiro à merda e parte em busca de outras filosofias de vida, essa marca continua lá, em algum canto, latejando, incomodando, feito farpa no dedo, caco de vidro no pé.

Isso quer dizer que sim, muita gente tem muitos motivos pra não ter nenhum respeito pela Igreja Católica. Como cobrar respeito por alguém que lhe fez tanto mal? Como cobrar respeito por alguém que segue achando que pode mandar na sua vida? E na vida de um país inteiro?

A imagem da santa é um símbolo. Símbolo do sagrado, pra alguns. Símbolo da opressão, pra outros. Eu jamais quebraria uma. Fácil pra mim. Mas posso entender p e r f e i t a m e n t e as dezenas de razões que tantas e tantas pessoas teriam pra despedaçar uma nossa senhora.

Há quem fale em tolerância religiosa. Wow! Como assim??? Vão falar isso pro Papa! Porque é a intolerância religiosa cristã que até hoje embarreira políticas públicas de saúde da mulher, de enfrentamento à Aids, de reprodução assistida e planejamento familiar, de combate à homofobia na escola, de reconhecimento de transexuais, de liberdade pros maconheiros, de dignidade pra prostitutas, etc, etc, etc.

Há quem compare a quebra da santa aos crentes que invadem terreiros de umbanda e destroem as imagens. Não, não, não, moço. Quando evangélicos arrebentam um centro, eles são os opressores, os históricos e violentos opressores. Aqui, quebrar a santa pode ser um ato de revolta de quem passou a vida tomando porrada, como um grito dos excluídos. A reação violenta do oprimido não pode ser comparada à sistemática e estabelecida violência do opressor.

A gente pode discutir se essa foi uma boa estratégia política. Vai agregar mais gente? Provavelmente não. As pessoas efetivamente entenderam o recado? Provavelmente não. Isso vai ser usado pelos conservadores pra desqualificar (mais?) a marcha? Certamente que sim.

Mas faz tempo que eu já deixei de acreditar que existe uma resposta certa. Já desisti de tentar convencer as pessoas daquilo que eu acho que é o caminho certo. Pelo simples fato de que eu posso estar absolutamente equivocado. Hoje eu acho que o movimento social precisa ser plural. E divergente. Se todo mundo concordar e agir do mesmo jeito, aí fudeu de vez. Portanto, talvez seja bom mesmo que algumas pessoas quebrem umas santas. Talvez seja bom mesmo que alguns manifestantes arrebentem umas vidraças. Talvez seja bom até mesmo que num momento de exaltação alguns vândalos botem fogo em certas assembleias legislativas... Eu não vou quebrar um banco, não vou invadir o Itamaraty ou subir no teto do Congresso. Eu sou cagão demais pra isso. Mas agradeço que existam doidos que topam essas coisas, porque eles forçam a barreira do senso comum de uma forma que eu nunca conseguiria. São essas bichas malucas, de calcinha enfiada e santa na mão, que me fazem pensar se eu não estou sendo uma bichinha comportada demais, legalista demais, medrosa demais, burguesa demais.

É bom que radicais e moderados convivam num mesmo movimento (e eu to mais pros primeiros, que fique bem claro). Dá mais consistência. Alimenta a reflexão crítica. Faz o tempo todo a gente repensar os nossos passos. Quando todo mundo anda igual, ninguém precisa justificar porque tá indo naquela direção. Como querer uma política que reconheça a diferença se não formos capazes de agir, politicamente, na diversidade?

Não sei no que vai dar - se é que vai dar em alguma coisa. Não sei se algumas pessoas vão se afastar da marcha por causa disso. Não sei se outras vão vir justamente por esse motivo. Só sei de uma coisa: se a porrada estancar, se o pau comer, se o bicho pegar, se o bonde passar e eu olhar pro lado, se as pontes de diálogo ficarem inviáveis, se eu tiver que escolher um lado, meu amigo e minha amiga, entre santas e vadias, eu não tenho dúvida. Certamente eu fico com as vadias...

ALEXANDRE BORTOLINI

Pra saber mais sobre o que aconteceu, você pode ler a matéria do G1. Mas leia com cuidado. E não acredite em tudo o que a Globo diz...
http://oglobo.globo.com/rio/manifestantes-quebram-imagens-sacras-na-praia-de-copacabana-9220356

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http://foradacaxa.blogspot.com.br/2012/03/carta-um-amigo-hetero.html