quarta-feira, 13 de julho de 2016

sobre bixas, novelas e visibilidade



Eu lembro que eu fiz uma festa pra juntar bixas pra assistir ao primeiro beijo gay na novela. Era 2005. Todo mundo ainda via novela. E já tava ficando comum que toda novela tivesse pelo menos uma personagem bixabitravasapatão. Mas faltava o beijo. Não tinha beijo. Mal tinha afeto. No máximo um passar de dedos no cabelo enquanto olha no olho. Pra vc ter ideia, uns anos antes, duas sapatão tomaram banho junta numa novela e pá, mataram elas uns capítulos depois. O beijo seria o auge da política da visibilidade. A  H O M O S S E X U A L I D A D E  não só falada, não só insinuada, mas vista, boca com boca, num beijo de tesão e amor na sala da família brasileira bem na hora do jantar! Era o momento em que a gente começava a forçar manifestações públicas de afeto. Lula tinha acabado de assumir. Não tinha preto nem pobre na universidade. Nem casamento. Nem sombra de kit gay. Redes sociais ainda eram irrelevantes e o Presidente dos Estados Unidos era o Bush. Daí você imagina. Aquele beijo teria uma importância considerável na disputa cultural que a gente tava vivendo. A gente já tinha aprendido a ter orgulho nos anos 80/90 e agora a gente queria era sair do armário de vez, se fazer ver, na família, na faculdade, no trabalho. E na rua. A gente precisava perder o medo de andar na rua. As pessoas precisavam aprender a lidar com bixa, com sapatão, com travesti. Em muitas casas ainda não se  f a l a v a  sobre isso. A gente já casava, já morava junto, mas ainda interpretava a amiga em vários contextos. Inclusive na família. Mesmo que todo mundo já soubesse, em poucas casas isso era um assunto de boa e em quase todas o afeto ainda era vetado. Mesmo aquela mãe super bacana e pra frentex (a minha por exemplo) ainda tinha problemas com isso. O beijo da novela seria a realização do beijo que a gente queria dar no almoço de família! Talvez o beijo desse força pra começar aquela conversa, que já faz tempo você devia ter tido, porque ser viado é uma coisa que se contava, como uma revelação (com consequências imprevisíveis e muitas vezes violentas). A novela ainda era a praça pública dessa cidadezinha provinciana chamada Brasil. O lugar onde todo mundo se encontrava. Se disse no jornal nacional, então é verdade. Se beijou na novela, então pode beijar na praça, no shopping, na faculdade, e no jantar de natal. Talvez o beijo resolvesse tudo, magicamente, e acabasse com todos os nossos medos. Talvez a gente tivesse pedindo pra televisão fazer uma coisa que a gente mesmo ainda não conseguia. É. Não teve beijo. Gravaram. Chegaram a gravar. Mas cortaram. A alta direção mandou cortar. Era lance muito arriscado. Não tinha arco-íris no face (nem face). Não tinha boticário, avon, c&a, nenhuma empresa que já tivesse usado bixa travesti ou sapatão como estratégia de marketing. Passar o beijo seria vanguardismo de mercado demais pra uma empresa conservadora como a Globo (e ela já tava inovando bastante pra época) ou compromisso político (que só um idiota esperaria de uma mega corporação de mídia). Não teve beijo. E mais uma vez eu entendi que a gente tava por nossa conta. E a gente mesmo beijou. E foi beijando. Cada vez mais. E tomando a rua. E fazendo paradas gigantescas. E enchendo a Paulista como nenhum coxinha ou petista jamais conseguiu. E tomando rua e praça em cidadezinhas de vinte mil habitantes. E fazendo parada em favelas maiores que elas. E garantindo do lado de cá a nossa existência. Hoje é a Globo que suplica audiência. Felizmente hoje eu posso ver só a cena, na internet, sem gastar nem mais um minuto do meu tempo, sem nem mesmo precisar ligar a televisão. A Globo vai acabar. Não demora muito tempo. E por inabilidade pra lidar com as mudanças de mercado. Simplesmente porque ela não consegue enxergar o óbvio. Porque ela só faz o que já é passado. A Globo vai acabar. Mas as bixas vão continuar. As sapatão vão continua. As bi, as trava, as trans, as queer, as não-binária, as puta que pariu que a gente inventar de ser. A gente vai continuar. Cada dia mais lindas, cada dia mais livres e cada dia mais  b e i j a n d o.